Existem algumas experiências que a gente precisa de um tempo pra entender.

No comecinho de 2010, o meu velho, boêmio e amado amigo Fábio Maleronka Ferron, o Bugre, me apresentou o novo amigo, Rodrigo Savazoni, e me fez um convite muito sério.

Naquela madrugada, na mesa dum boteco do Centro de São Paulo, a coisa mais idônea do convite era a convicção dos dois sobre a grandeza da proposta. Todo o resto me pareceu um sonho lindo.

Me propunham que eu arregimentasse o Yamandú Costa e outros dois violonistas de diferentes regiões do Brasil para que em um ou dois dias criássemos e gravássemos a trilha sonora de um site chamado Produção Cultural no Brasil. Em uma palavra, o site não era apenas um site, era uma plataforma que abrigava o maior debate virtual sobre cultura já feito, se não me engano, no mundo. A juventude dos músicos e o instrumento violão tinham sido escolhas do Fábio carregadas de sentido. Que eu fizesse o meio de campo entre os maiores músicos e o site; que eu tocasse o meu 7 cordas e produzisse a trilha.

Tento me conter, mas sou bastante dado a essa coisa de levar sonhadores a sério. Já tive provas suficientes de que bons sonhos melhoram a gente pra hora da vigília. Então, sem entender bem o que daquilo tudo era do boteco e o que seria nossa história, aceitei a deixa e comecei a procurar pontos de apoio pra transformar a encomenda em música.

Quatro violonistas não é sinônimo de quarteto de violões. Menos ainda com a tarefa que tínhamos pela frente: produzir com limitações de tempo e dinheiro a trilha que sintetizasse musicalmente a grandeza que os amigos me descreviam. Então a proposta idílica dos meus aliciadores, da criação coletiva instantânea e improvisada por quatro violonistas de quatro regiões diferentes do país, me pareceu a parte fraca do sonho e, já como produtor, cocei a cabeça e começamos uma longa negociação até chegar onde chegamos.

Sobre o Yamandú, desde a primeira conversa ao telefone até o último abraço do 18 de junho de 2010 na despedida do estúdio, a generosidade dele foi de uma grandeza inebriante. Coisa de gênio em música, profissão e humanidade. Maria Célia, sua cúmplice e produtora acho que há dez anos, também esteve entre os grandes nomes desse processo e lutou muito pra que tudo acontecesse. Gratidão!

Yamandú concordava comigo sobre os problemas de fazer o trabalho com quatro violonistas e Fábio e eu fomos avançando no labirinto até, com alguma ajuda da sorte, levantarmos a mais feliz das ideias: convidar o mestre Spok e fechar o trio! Trazer o Spok não era só escolher o diretor fenomenal da orquestra fenomenal de frevo (Fenomenal!). Spok é daqueles sujeitos que dão a impressão de só terem virtudes pra oferecer: generoso demais, simples e sofisticado demais, consciente da sua grandeza, presença encantadora e… musicalmente não ouso traduzi-lo aqui em palavras. (Escute-se Spok!) Final da história, os seus saxofones tinham o timbre e a excelência pra caber em todos os lugares e pra provocar, conduzir e seguir o violãozão do Yamandú.

No 18 de junho ensolarado em que o sonho virava história, as condições eram as seguintes: nos encontraríamos e almoçaríamos no hotel em que Yamandú e Spok estariam hospedados em São Paulo. Depois iríamos para a Casa da Cultura Digital pra tocar por umas duas horas e conceber o que seria gravado na mesma tarde no estúdio Na Cena. E assim foi. Encontro bom, comida boa, conversa boa, trânsito ruim…

Chegamos na Casa da Cultura Digital e havia um povo esperando pra assistir ao encontro. Yamandú deu a sentença: “Quanta mulher bonita por aqui, tchê! Temos que voltar sempre!”

Buscávamos em música as emoções que a equipe da Garapa, o Fábio, o Claudio Prado e as meninas ponta firme da Beijo Técnico descreviam sobre as entrevistas já filmadas que estavam sendo editadas e não veríamos naquele momento. Buscávamos excitação, brasilidade, saudade, lirismo, modernidade, irreverência…

Pensando no Spok, Yamandú levou um frevo inédito e nos ensinou. Spok ia simultaneamente ouvindo, entendendo e escrevendo a melodia rápida do “Frevinho”, como foi chamado. Pensei: bênção, mestres!

O mestre pernambucano também tinha pensado em um tema baseado no ritmo e na levada das flautas do “perré” dos caboclinhos de Pernambuco. Desenvolvemos juntos uma segunda parte com aquele lamento bem lírico e sertanejo que faltava pra trilha. Yamandú conduzia. Conduzia a música e a sociabilidade daquele encontro estabelecendo o vigor, a profundidade musical e a soltura em todos daquela sala. Conduziu também o profissionalismo quando propôs que o resto nós pensássemos lá no estúdio mesmo pra não sofrer depois com a falta de tempo. E fomos.

No Na Cena os técnicos liderados pelo Rodrigo Funai já tinham preparado um tanto o terreno e adaptar a sala pras nossas necessidades foi rápido. Enquanto afinávamos instrumentos, microfones e fones, Yamandú comentou que tinha também um acalanto inédito que poderia fazer em duo violão e sax soprano e um outro solo bonito, meio toada. Perguntou se interessavam. Todos riram, “se interessavam” ele perguntava… Se não me engano gravamos o “Frevinho” na segunda tocada. A concentração era total e os poucos retoques foram rápidos. Ventilava a generosidade dos gigantes e fiquei impressionado com o ritmo da produção que imperou ali.

Na hora de gravar o “Perré de Caboclinhos”, nasceu no violão do Yamandú a introdução que valeu. Vejo nela um jeito baiano de tocar o violão, meio tambor meio sanfona, polegar e indicador se cutucando. Lindo! Achei que o interlúdio lírico conseguiu fazer justiça à profundidade da sua ideia original e deixamos as coberturas dos vários sax de Spok pro final porque o Yamandú tinha hora pra pegar o voo pro Rio.

Spok e eu respiramos um pouco enquanto era gravado o solo de violão “Estrellita”. A propósito, das duas tocadas que gravou, Yamandú me disse que depois eu editasse um errinho ali. Não sei se percebi ou não o errinho, não sei nem se existe, mas ficou o dito pelo não dito e o seu violão monumental tem todas as marcas daquele dia monumental. No final da faixa ficou a frase “Deixa gravado aí. Vai saber…”

Na sequência debutou o “Duo Spok e Yamandú Costa” gravando o lindo “Acalanto”. Estreia mundial naquele dia! Nos últimos momentos desta faixa, quando todos já se preocupavam com o horário do avião, Yamandú voltou a sintetizar música, profissionalismo e humanidade: “Que se dane o avião! A música é mais importante!”

Terminou, nos abraçamos, ele se foi e os que ficamos entramos noutra fase. Agora tínhamos pela frente as coberturas de saxofones, alguma ediçãozinha e a mixagem para finalizar o áudio e entregar tudo na mesma noite.

(Justiça seja feita, nesse momento foi aberta a garrafa de Red Label que já figurava na primeira versão do script apresentado lá na mesa do bar.)

Mestre Spok mandou ver. Ele no aquário e eu na técnica do estúdio íamos amarrando o que faltava. Enquanto determinava cada nota na perfeição ele ia também contando um pouco da vida pra toda a equipe, conversa entre as caixas de som da nossa sala e os fones dele. Ensinamento se transmite assim, empacotado nos afazeres, tradição.

Ajudado pelo Rodrigo Funai, que comprou a briga da equipe e deu o sangue até a hora que precisou, fiz naquela mesma hora a mixagem.

Mais ou menos meia noite, todos emocionados e cansados, com Spok e Claudio Prado contando as vidas, ia crescendo, fazendo história e tomando consciência a familia musical responsável pela trilha sonora dos vídeos de Produção Cultural no Brasil.

Existe ainda uma quinta composição no repertório dos vídeos. Uma música minha chamada “Rojita Valiente” tinha sido usada na fase prévia da edição das imagens. Acho que ela se recusou a sair, criou raízes, ficou lá mesmo e virou irmã das que gravamos naquele dia. Fico muito feliz com a exceção e celebro os parceiros que me acompanham nesta faixa, João Poleto no sax soprano, Marcos Paiva no baixo acústico e Douglas Alonso na bateria.

Existem algumas experiências que a gente precisa de um tempo pra entender.

Hoje, vendo um vídeo depois do outro no site, transformado pelo conjuto das experiências contadas nas entrevistas, vou tomando uma consciência nova sobre o Brasil. Não esperava que se tratasse disso. Não esperava tanto.

Aquela utopia que o Fábio e o Rodrigo me apresentaram de madrugada na mesa do bar do Centro de São Paulo já tem lugar. E o engraçado é que era sonho mesmo, foi vivido como sonho pelos criadores e técnicos, por cada um dos entrevistados, e agora está no ar pra compor o sonho de todos. Sobretudo: pra melhorar a nossa vigília!