Texto criado como material didático para os alunos da Escola do Auditório Ibirapuera.

 

Pixinguinha

Um dos maiores nomes da música brasileira de todos os tempos, Pixinguinha, o Alfredo da Rocha Viana Filho, nasceu em 23 de abril de 1897 no bairro de Piedade, subúrbio do Rio de Janeiro.

O apelido que surgiu na infância não era Pixinguinha, mas Pizinguim, dado pela sua avó Edwirges lembrada por ele como a avó africana. Esse apelido queria dizer “menino bom” ou “pequeno bobo”. Depois disso, numa época de epidemia, contraiu varíola e começaram a lhe chamar Bexiguinha, depois Pexinguinha até chegar ao nosso famoso Pixinguinha. Mas sua família continuou lhe chamando sempre de Pizinguim.

Foi filho do segundo casamento de sua mãe, que teve ao todo catorze filhos, e cresceu num ambiente com uma vida musical muito intensa. Seu pai, funcionário dos Telégrafos, era também flautista amador apaixonado pelo choro e reunia habitualmente em sua casa amigos músicos. Alguns deles eram nomes importantíssimos no cenário musical da época como Irineu de Almeida, Candinho do Trombone e Quincas Laranjeiras. Esta forte relação do pai com a música, lembrada em todos os depoimentos sobre a infância e adolescência de Pixinguinha, é confirmada pelo fato de que dos nove filhos vivos deste segundo casamento todos tocavam um ou mais instrumentos musicais! Neste ambiente, no casarão da rua Vista Alegre que veio a ser apelidado de Pensão Viana pela da hospitalidade com que eram abrigados inúmeros amigos, foi que se consolidou a vocação musical de Pixinguinha. Ele já vinha tocando cavaquinho desde por volta dos dez anos, acompanhando seus irmãos e seu pai até começar a ter aulas com seu grande mestre – mas também amigo e hóspede da casa – Irineu de Almeida.

Em depoimentos gravados em 1966 e 1968 para o MIS, Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, Pixinguinha reaviva umas memórias que ilustram bem este período.

“Eu, menorzinho, ficava apreciando… gostava de música. Por volta das 20 ou 21 horas meu pai dizia: ‘Menino, vai dormir!’ E eu, perfeitamente, ia para o quarto. Mas não dormia não. Ficava ouvindo aqueles chorinhos que eu gostava tanto. Normalmente, eles começavam a tocar de manhã e eu aproveitava tudo isso. Na época eu já tinha uma flauta de folha. No dia seguinte, executava os chorinhos que tinha aprendido na véspera, de ouvido. Meu professor, que estava morando lá em casa, dizia: ‘Esse menino promete!’ ”.

Pois foi assim. Sempre avançado muito rapidamente, primeiro nos estudos depois no reconhecimento profissional, Pixinguinha conheceu e digeriu as riquezas da vida musical de sua época e promoveu um avanço incalculável em vários aspectos da nossa tradição musical. Por um lado teve os estudos – os musicais e os regulares – sempre muito estimulados no ambiente familiar apesar de sua origem modesta (economicamente, porque culturalmente quanta riqueza!). Isso o permitiu dominar essa linguagem musical sofisticada, o choro, que poucas décadas antes tinha começado a deixar de parecer música clássica européia para virar o fundamento da música popular brasileira. Por outro lado Pixinguinha também era herdeiro de outras riquezas, mais africanas, que o apresentavam de um jeito diferente o ritmo, a festa, a oralidade e a improvisação.

Pixinguinha maduro, além de um dos compositores mais admirados pela inspiração e quantidade de suas composições, foi também regente e arranjador criador de um estilo próprio e que fez historia com suas introduções marcantes e modulações antes inusuais para as orquestras das rádios da época. Foi ainda um flautista virtuose (seguindo uma linhagem importante no Brasil depois de nomes como Joaquim Callado e Patápio Silva) que sempre surpreendia com sua técnica e capacidade de recriação de melodias, ornamentos e contrapontos.

Logo no começo da sua vida profissional bem prematura aconteceu um episódio que já deixou ver muito do que vinha pela frente. Pixinguinha foi indicado pelo grande violonista Tute, um dos primeiros 7 cordas do Brasil, para substituir o flautista do Teatro Rio Branco, Antônio Maria Passos, que adoecera:

“Tute tanto insistiu que o gerente [Sr. Auler] e o Paulino Sacramento, regente da orquestra, afinal concordaram. Nesse dia eu estava soltando um papagaiozinho na Estação da Piedade, coisa que eu fazia sempre nas horas vagas. Chegou então um representante do Sr. Auler me procurando: ‘É aqui que mora o Sr. Pixinguinha?’ Minhas irmãs ficaram desconfiadas: ‘Sr. Pixinguinha?… É, tem um Sr. Pixinguinha soltando papagaio.’ ‘Eu queria falar com ele’, disse o representante. Depois dirigiu-se a mim: ‘Eu trago aqui um pedido para que o senhor compareça lá no Teatro Rio Branco, pois foi indicado para tocar flauta.’ ‘Eu?… Eu não vou’, disse assustado. O Teatro Rio Branco era muito conhecido naquele tempo. Minhas irmãs então incentivaram: ‘Vai, vai, deixa de ser tolo!’ Eu aí respondi: ‘Sim, senhor, então eu vou.’ (…) Me preparei com a calça curta e a caixinha de flauta e fui lá no dia marcado, pela noitinha. (…)”

“O Tute já estava lá e me apresentou. (…) [Seu Auler] olhou pra mim e disse: ‘Isso não é um moço, é um fedelho.’ Eu tremi, fiquei com medo, sabe? (…) Lá dentro me apresentaram ao Paulino Sacramento, o regente. Ele era muito grande e delicado. Disse: ‘Bom, tem isso aí, vamos ensaiar?’ Tinha um ensaio. Mas eu já estava prático em leitura musical, porque o meu professor era o Irineu de Almeida. Ele sempre escrevia para que eu lesse, foi um grande professor. (…) A trilha podia ser grande, mas pra mim era fácil, pois eu já tocava coisas mais difíceis. Executei aquilo com facilidade. O maestro gostou de mim. Depois, eu coloquei umas bossas por fora, sabe? (…) Eu não obedecia muito à partitura, porque era do choro e tinha um bom ouvido. Então, eu ia fazendo umas bocaduras, quer dizer, executava o que vinha na minha inspiração. E o maestro Sacramento gostou.”

E o flautista Antonio Maria Passos se recuperou e voltou ao Teatro…

“Ele era um bom flautista, mas respeitava muito o que estava escrito. Não fazia as minhas variações. (…) Então o Paulino Sacramento disse: ‘Ih, tá ruim, o Maria Passos não fez aqueles negócios!’ O Antônio Maria Passos ficou aborrecido com isso, saiu do teatro e eu fiquei como efetivo.”

Todos os que conheceram Pixinguinha são unânimes quando falam de sua doçura, generosidade, um cara bondoso mesmo. Mas essa dureza ele não pode evitar, né?

E nesse jeito espontâneo de tocar, Pixinguinha foi definindo meio sem querer como é que se faz na música brasileira. Foi assim também quando, no ano de 1922, ele e seu conjunto Os Oito Batutas passaram seis meses tocando em Paris como conseqüência de um apoio privado recebido de um admirador milionário, Arnaldo Guinle. O intercambio cultural trouxe conseqüências no repertório do conjunto (começaram a experimentar uns fox-trots, tangos e outros ritmos estrangeiros), na instrumentação (trombones de vara, saxofones, banjos, bateria…) e possivelmente na sua linguagem como arranjador. Nesta época Pixinguinha começou a namorar o saxofone tenor em que tempos depois, por detrás da flauta de Benedito Lacerda, daria acabamento à maneira brasileira de se fazer contracanto. Inconfundível na composição e no improviso.

Muita gente gosta de tratá-lo por “São Pixinguinha”. Poesia aparte, são unânimes as opiniões sobre a beleza da sua obra, sobre a profundidade do seu conhecimento, a generosidade com que muitas vezes deixou de brigar por coisas como direitos autorais, a paz que transmitia a quem lhe conheceu de perto. Paz que só um gigante.

Fazer música brasileira desde então é sempre, de alguma maneira, render homenagem a Pixinguinha.

Pixinguinha morreu aos 75 anos em 17 de fevereiro de 1973, no Rio de Janeiro, dentro da igreja Nossa Senhora da Paz onde fora batizar o filho de um amigo que seria seu afilhado.

 

JURANDO FALSO

O samba que estamos estudando, Jurando Falso, nasceu então das mãos desse gigante.

Dá pra perceber que não é um samba como os que estamos habituados a cantar. A melodia parece mesmo mais feita para tocar que para cantar. Isso é uma característica muito comum dos choros: nascem pra ser tocados. Em geral os choros cantados receberam suas letras depois de prontos, feitas por outro letrista que não o seu compositor. E é claro que os choros que mais se prestam a letras são os mais lentos. Existiram também grandes intérpretes de choros rápidos, que cantavam com virtuosidade, como Ademilde Fonseca e Carmem Miranda, mas os choros-canção (choros que emprestam a cadência dos sambas-canção) tem aquela vantagem de ser convidativos e pedirem pra ser cantados. Quem não canta uma partezinha que seja de Carinhoso, Lamento ou a valsa Rosa, três temas lentos de Pixinguinha que foram imortalizados com letra?

Então isso quer dizer que a indicação “samba” nessa e em outras partituras de Pixinguinha deve dizer respeito a aspectos musicais da composição: ritmo, melodia-harmonia e forma.

Aqui vão algumas observações que nos ajudarão a pensar quanto de samba e quanto de choro existe em Jurando Falso.

  • Os choros, na tradição que Pixinguinha ajudou muito a imortalizar, costumam ter três partes.
  • As três partes costumam estar em tons vizinhos ou, algumas vezes, nem mudam de tom. (Chamamos tons vizinhos às tonalidades com muitas notas em comum. Tons distantes têm poucas notas comuns e apresentam passagem menos suaves de um para o outro.)
  • E existem variações, mas é muito comum que, no choro, estas três partes sejam compostas por 16 compassos cada uma. [Volto a dizer: as variações nestas medidas são cada vez mais freqüentes, mas elas têm origem nas músicas que se tocavam nas cortes européias para as danças de salão; as mesmas danças e músicas que vieram com a Corte Portuguesa para Salvador e para o Rio de Janeiro. As três partes (A, B e C) e a ordem em que elas devem ser tocadas, sua “forma” (AABBACCA), também são heranças que o chorinho traz da “forma rondó” da música clássica européia.]
  • O samba apresenta normalmente um apoio bem marcado no segundo tempo de cada compasso binário e isso faz com que ele fique mais cadenciado.
  • O choro, na maioria das vezes também é binário, mas é comum que ele tenha melodias muito angulosas, daquelas difíceis de cantar, parecidas à música barroca. De alguma maneira parecidas à musica de J. S. Bach e muitos outros de sua tradição.
  • No samba a repetição da melodia, depois de apresentado o tema é muito comum, principalmente no refrão. Este procedimento tem origem na maneira africana de cantar a resposta em coro a uma primeira melodia. Isso é bem perceptível no samba de partido alto, mas também ocorre em muitíssimas musicas populares de origem africana.

Perguntas

  1. Quantas partes tem a música Jurando Falso?
  2. Quantos compassos tem cada parte (sem contar com a repetição das partes)?
  3. Qual o tom destas partes?
  4. Qual a forma da música?
  5. Alguma das partes de Jurando Falso te parece “mais choro” ou “mais samba” que outra?
  6. Você se lembra de conhecer algum choro?
  7. E se lembra de algum outro choro com características rítmicas de samba?
  8. Onde você acha que há mais espaço para a improvisação: no choro ou no samba?
  9. Se você conhece lugares onde se toca choro: Nestes lugares o choro se toca alternadamente com o samba ou só se toca choro?
  10. Quais os instrumentos típicos do choro? E do samba?
  11. Você percebe outras semelhanças ou diferenças entre os dois gêneros?

 

clique para ampliar

 

Uma última provocação pra essa nossa discussão.

Choro e samba são filhos do mesmo pai e da mesma mãe, mas vejam só como Pixinguinha respondeu, no depoimento realizado no MIS, à pergunta do Hermínio Bello de Carvalho:

“- Na época [antes de 1920] você já ouvia falar em samba?”

“Samba é com o João da Baiana. Eu não era do samba. Eles faziam seus sambas lá no quintal e eu meus choros na sala de visitas. Às vezes eu ia no terreiro fazer um contracanto com a flauta, mas não entendia nada de samba. A sua origem, essa coisa toda, isso eu também não sei.”

 

Fontes consultadas para este trabalho:

  • Síntese dos depoimentos à posteridade realizados por Pixinguinha no Museu da Imagem e do Som, em 6 de outubro de 1966 e 22 de abril de 1968, tendo como entrevistadores, no primeiro depoimento, Hermínio Bello de Carvalho, Cruz Cordeiro, Ilmar Carvalho, Ari Vasconcelos e Hélio Marins David e no segundo, H. B. de Carvalho e Jacob do Bandolim, em ambos com a direção de Ricardo Cravo Albim, diretor do Museu. In: Encarte de disco da Som Livre, Agô, Pixinguinha! 100 anos
  • Sergio Cabral, Pixinguinha, vida e obra. 1997, Luimiar Editora
  • Enciclopédia da Música Brasileira, 2000, Publifolha